quarta-feira, 18 de agosto de 2010

natureza-morta*


enquanto retorno a pé para o meu não-lar
eu só consigo sentir a friagem tomando minha pele
ela tenta me envolver e me tomar, mas mantenho meus lábios voltados para dentro de minha boca.
minhas mãos estão nos bolsos e meu rosto e minha respiração tomados pelo frio seco que faz arder minhas narinas.
eu só consigo sentir ou não-sentir-me durante todo trajeto. só sinto-me humano quando me aproximo de casa e ao levantar-me a cabeça perceber a brisa fria doer em minha pele, ao entrar em contato com meu suor. suor?
suor que eu não senti.
(ser o que não consegui)
quando me aproximo do portão dá-me um desejo enorme de voltar ao início do percurso. é um silêncio doloroso diante dos ruídos da cidade que me deixam tão afoito e irritado.
me atormentam as pessoas correndo e suando.
são tão humanas. e eu, projeto-humano, em passos lentos só sinto-me humano quando estou no banheiro e deixo cair toda minha matéria orgânica.
só me sinto humano pela matéria morta que cheira.
só me sou humano quando tiro minhas unhas dos pés, que não consigo levar à boca, como faço costumeiramente com os dedos das mãos.
levo-as ao meu sentido e o cheiro é forte. o cheiro é humano. sou esse cheiro.
sou o cheiro de tabaco que aos poucos toma minha mão direita assim como esse grafite a toma pra si.
nu, espero o momento de limpar o que me é tão humano: meu corpo.
território meu.
território que não mostraria para ninguém.
aquilo que não deixaria sob irradiação nenhuma: meu corpo nu refletido nesse espelho.
não tenho coragem de fitá-lo permanentemente.
quero ocultá-lo.
um espelho, afinal, apenas reflete.
não transparece.
um espelho existe e se enquadra nas idéias de espelho: reflexão.
minha imagem parece real: substância e essência.
meu corpo refletido na idéia de espelho subexiste.
sou a essência de uma imagem refletida, apenas.
o que seria o pior de mim próximo àquilo que me é humano?
o cheiro que desagrada, o odor que exala.
o que são eles próximo à minha imagem não-refletida no espelho?
imagem?
...minha não-imagem não-refletida nesse espelho.
quando olho pra dentro de mim posso enxergar e ver, inúmeras não-imagens.
enxergo, apenas.
eles não refletem, irradiam.
ora opostos, ora intensos esses não-espelhos de dentro de mim me não-mostram não-imagens-mil de mim mesmo.
eu sou o óleo que transpira meus poros e o mau hálito que transpira de minha boca.
eu sou o cheiro forte do meu couro cabeludo, que produz mais matéria morta...
...os cabelos e as unhas continuam a crescer, mesmo depois da morte.
talvez eu seja uma natureza morta em sua atemporalidade.


*(escrito em 2005 ou 2006)

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